A morte da baleia

Affonso Romano de Sant'Anna

A MORTE DA BALEIA

 

                   para Tristão de Athayde

    1

 

Na Paraíba, Nordeste do país,

convidam-me a ver a morte da baleia.

Dizem: — que pesca da baleia — como se dissessem: — jogar tênis

ou qualquer outro esporte

  em que o animal

     participasse alegremente

Dizem: — pesca da baleia — como se dissessem: — ir à missa

          onde Cristo morreria impunemente.

Dizem: — pesca da baleia — como se dissessem: — carnaval

     onde se brinca eternamente.

 

O espetáculo dura toda a noite

e quem o assiste não pensa em assassinato.

 

Pensa:

  vou como quem vai às compras

  — ou algo semelhante, vou visitar parente

  vou visitar parente

  — ou ver filme interessante.

 

Ninguém diz: — vou ao enterro da baleia

      — que em mim mato e morre a cada instante.

 

    2

 

"Junho — diz-me este folheto — é tempo de pureza e paz."

Por isto

    "o dia começa no mar. Bem cedo

         lá pelas 4 horas

                       desponta o Seiho Maru

         (todo de aço)

                       nas verdes águas

    da costa paraibana.

         Avistada a presa o tiro é certeiro

         e a pequena reação da baleia

         — só apressa seu final".

 

Como se vê

       não é jogo floral nem ikebana

       e o samurai é quem morre

       nesta luta marcial.

 

Por isto é preciso desfolhar desse folheto

além do dito, o não-dito:

        — o que não diz nosso ódio

          e o nosso medo desdiz.

 

Deveria eu dizer, por exemplo,

que arpões explodem na montanha de carne num guarda-chuva de sangue?

e que são arpões modernos e eternos

  que não toleram o arranque,

  que não toleram a sanha,

  que quanto mais se puxa

  — mais o fero inferno entranha?

 

    3

 

Nos romances como Moby Dick e O Velho e o Mar

ou na história bíblica de Jonas

o animal é algo nobre

       e a vida

         — um duelo par-a-par.

 

Entre o homem e a fera há

      um pacto de amor e ódio,

      um rito de água e sangue,

      e a vitória é de ambos.

 

Mas este folheto descreve

palanques no local e um festival

de lâminas e gestos

    que espertos funcionários da Copesbra

 executam em dança nordestina e oriental

    retalhando em dois minutos

      a descomunal carne da presa.

 

E o folheto ainda reza:

    "Da baleia tudo se aproveita:

        óleo

        charque

        farinha de osso

        fígado

        adubo

        carne-verde.

        As barbatanas

        e os dentes

convertem-se em adornos

vendidos aos turistas"

  — trazidos no Planetur.

 

    4

 

Deveria eu introduzir um pouco mais de humor nessa tragédia

e dizer?

         — no Nordeste do país

    convidam-me para um drama

    onde quem morre

     — é a principal atriz.

 

Deveria eu distribuir um pouco mais de aço no cangaço

e dizer?

         — nos mares do sertão

    onde o sangue é agreste e aguado

    a baleia é o Lampião

    que morre sempre sangrado.

 

Deveria eu suar com um pouco mais de gozo nesse ato

e dizer?

 

         — nas costas da Paraíba

    convidam-me a ver o orgasmo

    visual de seus arpões,

    e o ensangüentado espasmo

    — dos cações.

 

Deveria derramar um pouco mais de óleo nesse mar

e dizer?

 

         — em nossas duzentas milhas

    quando a broca pesqueira

    perfura a rocha-baleia

    ela volta do mergulho e expele

    seu íntimo e último petróleo

    que a engenharia terrestre

    de seu corpo faz jorrar.

 

Deveria eu tocar um pouco mais de dança no folclore

e dizer?

 

         — nas festas da Paraíba

    assisto ao bumba-baleia

    onde o boi é um ser marinho

    que dança morto na areia.

    Mas sendo este cetáceo

    um pesado bailarino

    a quem negam engenho e arte,

    como um peixe-aderaldo

    ou um cego-cachalote

    ele se perde nas rimas

    enquanto perde seu mote.

    É um ator-espadarte

    que se esquece da deixa

    e ao reler a linha d'água

    no discurso do horizonte

    descobre o ponto da morte.

 

Por isto este palhaço

que no palco larga as partes

 

                 é o cantor desafinado

                      que perdeu seu desafio,

                 é o poeta em cruz pregado

                      com martelo agalopado,

                 é o cavalo-marinho

        que sobre a terra é caçado,

        é a nau catarineta

        que nunca achou o caminho.

 

    5

 

Descubro no folheto

 

  o folhetim da aventura

  um mapa que não decifro, a dura rota pirata

  dos que verminam nas grutas da baleia

  numa engordurada fúria, como se pilhassem

  a ossatura náufraga de um barco

  encalhado num rochedo

    a dessangrar riqueza espúria.

 

E descubro

que quando cortam suas entranhas

e as espalham no varal da areia

também se pode dizer:

 vou quarar as carnes dela

 como lavo meu lençol,

 

 e ensaboar minha alma

 com o anil comercial,

 

 vou limpar-me de suas tintas

 como o pintor o pincel

 

 e no quaradouro da tarde

 fazer nossa bienal.

 

Essas carnes no cordel, descoloridas

são festas de São João

      ou avesso carnaval?

 

Então por que aqui se ajuntam dúzias

de pescadores num diário ritual

onde ninguém se julga Judas

embora comam o pão e o vinho

    — do salvador animal?

 

   6

 

Como sendo eu mineiro

      — do sem-mar,

      — do montanhoso horizonte,

posso pintar baleias bíblicas

fora da barroca e eterna nave que Ataíde deu a Deus?

 

— Que direito tenho eu

     entre mutilados profetas,

     de falar do ouro torpe e inconfidente

     que lavramos nas baleias das conjurações,

     e do aço e ferro que extraímos

     do pêlo das montanhas

     — que morrem ensangüentadas no poente?

 

— Como dizer

   que em Minas não esquartejam baleias?

   nem salgam sua casa, casco e nome?

   que aqui se morre de morte natural

         no frigominas

         no frigonorte,

que uma coisa é o zebu e outra o espadarte,

que uma coisa é o gado gir outra o cachalote,

que uma coisa é o animal de pesca

   — outra o animal de corte?

 

— Que tenho eu a dizer

              se em Minas não fazemos carne-seca

       com sua aguada morte?

              nem grelhamos nossos lucros

       no braseiro azul das horas?

              nem estendemos seu couro

       em nossa entapetada alma?

              nem penteamos o ócio

       com os cornos de sua sorte?

 

Deus me livre de comparar tais coisas

e cometer crimes poéticos

que Horácio condenou

 — pois nos nordestes de Roma

 e nos coliseus daqui

            sempre cai em desgraça

 quem pinta um javali nas ondas

 ou um delfim nas matas.

 Por isto apago do mar o boi

 e a baleia apago ao pasto.

 

Inconfidente confesso

 torturado na devassa

 pesco a lição da história

 na baleia-paraíba

 e nas minas das gerais

 — duas maneiras de estar

 perdido num só país.

 

 Me lembro de um certo outubro

 (da Aliança Liberal)

 dos idos tristes de março

 (que para alguns foi abril)

 em que o povo - esse anfíbio

 como sempre foi pescado

 pelo discurso na praça:

   — façamos a revolução

   antes que a baleia a faça.

 

     7

 

Esta baleia-mulher lancetada

    nos fios do bastidor

é a mulher nordestina

    entre-tecida na renda,

    entristecida na sede

    e possuída na rede

      — do seu senhor.

 

    Maria Bonita dos mares,

    sinhá-moça de espartilho,

    mulata seviciada,

    freira limpa enclausurada,

    mulher-dama desonrada,

    doméstica empregada,

    operária empobrecida,

      virgem-máter dolorosa.

 

Esta é a baleia-mulher

        despencando

     dos motéis

aos disparos musculosos do pescador assassino

    e seu sexo voraz.

 

Mais que a baleia-azul

  é a baleia-menina, a mink

  criança, baleia-em-flor

  na grade colegial

 

adolescente e ansiada

 desvirginada andorinha

 no azul-e-branco da tarde

         do colégio que há em nós.

 

 Esta baleia-mulher

 é a que retemos em casa

 (dividimos com amantes)

 sonhamos que é mãe perfeita

 prepara jantar e cama

 e nos serve o copo e o corpo

 em postas de carne amorfa.

 

     8

 

Elas se ajuntam em manadas no marajó das águas?

Elas rezam em grupo como crentes com sua fé disparada?

Sobem ladeiras de ondas com seus ex-votos nos ossos?

 

                Baleias são como o povo.

                Esperam o líder-messias

                e o seguem proletárias

                num aquoso comício

                até se jogarem na areia

  das prisões

 e calabouços.

 

Baleias são como o povo.

Desprotegida alimária

sem saber qual o salário,

   qual a força de trabalho,

   desovando em praça alheia

   como se o mar fosse seu.

 

E no Nordeste, as baleias

       confundidas ignoram

                           se o sertão já virou mar,

        se o mar virou sertão.

 

  Antes lembram o Conselheiro

  com seus homens de Canudos

  caçados pelos obuses

  de nossa fera república.

 

   9

 

No Nordeste do país

assim como na favela ao lado

talvez haja "pureza e paz"

      como há polícia e grito

      se amanhece uma milícia

      entre pássaros aos bandos

      na "operação arco-íris"

      contra o pivete-baleia

      e o terrorista cardume

      preso em bancos de areia.

 

Ainda ontem em Ipanema

uma garota-baleia

vinda do chopp das ondas

encalhou

   à beira-mar.

      Foi morta

pelos banhistas

     e aquele que

        salva-vidas

        dela salvou-lhe o olho

        num colar para Iemanjá.

 

Por isto

   a morte marítima,

     terrestre

     ou marginal

dessa baleia

   mais que metáfora

    ou pintura,

   mais que mostra multinacional de usura,

   a qualquer hora que ocorra,

além de um crime a se ostentar,

   é a nossa impotência na linha do horizonte,

   um modo colorido de trucidar a aurora

 

   — e ensangüentar o mar.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Você também pode se interessar por

— Colofão

Coordenação

Marcelo Ferraz (UFG/CNPq)

Nelson Martinelli Filho (IFES/UFES/CNPq)

Wilberth Salgueiro (UFES/CNPq)

Bolsistas de apoio técnico (FAPES)

Juliana Celestino

Valéria Goldner Anchesqui

Bolsistas de pós-doutorado (CNPq)

Camila Hespanhol Peruchi

Rafael Fava Belúzio

Pesquisadores/as vinculados/as

Abílio Pacheco de Souza (UNIFESSPA)

Ana Clara Magalhães (UnB)

Cleidson Frisso Braz (Doutorando UFES)

Cristiano Augusto da Silva (UESC)

Diana Junkes (UFSCar)

Fabíola Padilha (UFES)

Francielle Villaça (Mestranda UFES)

Henrique Marques Samyn (UERJ)

Marcelo Paiva de Souza (UFPR/CNPq)

Mariane Tavares (Pós-doutoranda UFES)

Patrícia Marcondes de Barros (UEL)

Susana Souto Silva (UFAL)

Weverson Dadalto (IFES)

Além dos nomes acima muitas outras pessoas colaboraram com o projeto. Para uma lista mais completa de agradecimentos, confira a página Sobre o projeto.

O MPAC é um projeto de caráter científico, educativo e cultural, sem fins lucrativos. É vedada a reprodução parcial ou integral dos conteúdos da página para objetivos comerciais. Caso algum titular ou representante legal dos direitos autorais de obras aqui reproduzidas desejem, por qualquer razão e em qualquer momento, excluir algum poema da página, pedimos que entrem em contato com a nossa equipe. A demanda será solucionada o mais rapidamente possível.

— Financiamento e realização

© 2025 Todos os direitos reservados