A MORTE DA BALEIA
para Tristão de Athayde
1
Na Paraíba, Nordeste do país,
convidam-me a ver a morte da baleia.
Dizem: — que pesca da baleia — como se dissessem: — jogar tênis
ou qualquer outro esporte
em que o animal
participasse alegremente
Dizem: — pesca da baleia — como se dissessem: — ir à missa
onde Cristo morreria impunemente.
Dizem: — pesca da baleia — como se dissessem: — carnaval
onde se brinca eternamente.
O espetáculo dura toda a noite
e quem o assiste não pensa em assassinato.
Pensa:
vou como quem vai às compras
— ou algo semelhante, vou visitar parente
vou visitar parente
— ou ver filme interessante.
Ninguém diz: — vou ao enterro da baleia
— que em mim mato e morre a cada instante.
2
"Junho — diz-me este folheto — é tempo de pureza e paz."
Por isto
"o dia começa no mar. Bem cedo
lá pelas 4 horas
desponta o Seiho Maru
(todo de aço)
nas verdes águas
da costa paraibana.
Avistada a presa o tiro é certeiro
e a pequena reação da baleia
— só apressa seu final".
Como se vê
não é jogo floral nem ikebana
e o samurai é quem morre
nesta luta marcial.
Por isto é preciso desfolhar desse folheto
além do dito, o não-dito:
— o que não diz nosso ódio
e o nosso medo desdiz.
Deveria eu dizer, por exemplo,
que arpões explodem na montanha de carne num guarda-chuva de sangue?
e que são arpões modernos e eternos
que não toleram o arranque,
que não toleram a sanha,
que quanto mais se puxa
— mais o fero inferno entranha?
3
Nos romances como Moby Dick e O Velho e o Mar
ou na história bíblica de Jonas
o animal é algo nobre
e a vida
— um duelo par-a-par.
Entre o homem e a fera há
um pacto de amor e ódio,
um rito de água e sangue,
e a vitória é de ambos.
Mas este folheto descreve
palanques no local e um festival
de lâminas e gestos
que espertos funcionários da Copesbra
executam em dança nordestina e oriental
retalhando em dois minutos
a descomunal carne da presa.
E o folheto ainda reza:
"Da baleia tudo se aproveita:
óleo
charque
farinha de osso
fígado
adubo
carne-verde.
As barbatanas
e os dentes
convertem-se em adornos
vendidos aos turistas"
— trazidos no Planetur.
4
Deveria eu introduzir um pouco mais de humor nessa tragédia
e dizer?
— no Nordeste do país
convidam-me para um drama
onde quem morre
— é a principal atriz.
Deveria eu distribuir um pouco mais de aço no cangaço
e dizer?
— nos mares do sertão
onde o sangue é agreste e aguado
a baleia é o Lampião
que morre sempre sangrado.
Deveria eu suar com um pouco mais de gozo nesse ato
e dizer?
— nas costas da Paraíba
convidam-me a ver o orgasmo
visual de seus arpões,
e o ensangüentado espasmo
— dos cações.
Deveria derramar um pouco mais de óleo nesse mar
e dizer?
— em nossas duzentas milhas
quando a broca pesqueira
perfura a rocha-baleia
ela volta do mergulho e expele
seu íntimo e último petróleo
que a engenharia terrestre
de seu corpo faz jorrar.
Deveria eu tocar um pouco mais de dança no folclore
e dizer?
— nas festas da Paraíba
assisto ao bumba-baleia
onde o boi é um ser marinho
que dança morto na areia.
Mas sendo este cetáceo
um pesado bailarino
a quem negam engenho e arte,
como um peixe-aderaldo
ou um cego-cachalote
ele se perde nas rimas
enquanto perde seu mote.
É um ator-espadarte
que se esquece da deixa
e ao reler a linha d'água
no discurso do horizonte
descobre o ponto da morte.
Por isto este palhaço
que no palco larga as partes
é o cantor desafinado
que perdeu seu desafio,
é o poeta em cruz pregado
com martelo agalopado,
é o cavalo-marinho
que sobre a terra é caçado,
é a nau catarineta
que nunca achou o caminho.
5
Descubro no folheto
o folhetim da aventura
um mapa que não decifro, a dura rota pirata
dos que verminam nas grutas da baleia
numa engordurada fúria, como se pilhassem
a ossatura náufraga de um barco
encalhado num rochedo
a dessangrar riqueza espúria.
E descubro
que quando cortam suas entranhas
e as espalham no varal da areia
também se pode dizer:
vou quarar as carnes dela
como lavo meu lençol,
e ensaboar minha alma
com o anil comercial,
vou limpar-me de suas tintas
como o pintor o pincel
e no quaradouro da tarde
fazer nossa bienal.
Essas carnes no cordel, descoloridas
são festas de São João
ou avesso carnaval?
Então por que aqui se ajuntam dúzias
de pescadores num diário ritual
onde ninguém se julga Judas
embora comam o pão e o vinho
— do salvador animal?
6
Como sendo eu mineiro
— do sem-mar,
— do montanhoso horizonte,
posso pintar baleias bíblicas
fora da barroca e eterna nave que Ataíde deu a Deus?
— Que direito tenho eu
entre mutilados profetas,
de falar do ouro torpe e inconfidente
que lavramos nas baleias das conjurações,
e do aço e ferro que extraímos
do pêlo das montanhas
— que morrem ensangüentadas no poente?
— Como dizer
que em Minas não esquartejam baleias?
nem salgam sua casa, casco e nome?
que aqui se morre de morte natural
no frigominas
no frigonorte,
que uma coisa é o zebu e outra o espadarte,
que uma coisa é o gado gir outra o cachalote,
que uma coisa é o animal de pesca
— outra o animal de corte?
— Que tenho eu a dizer
se em Minas não fazemos carne-seca
com sua aguada morte?
nem grelhamos nossos lucros
no braseiro azul das horas?
nem estendemos seu couro
em nossa entapetada alma?
nem penteamos o ócio
com os cornos de sua sorte?
Deus me livre de comparar tais coisas
e cometer crimes poéticos
que Horácio condenou
— pois nos nordestes de Roma
e nos coliseus daqui
sempre cai em desgraça
quem pinta um javali nas ondas
ou um delfim nas matas.
Por isto apago do mar o boi
e a baleia apago ao pasto.
Inconfidente confesso
torturado na devassa
pesco a lição da história
na baleia-paraíba
e nas minas das gerais
— duas maneiras de estar
perdido num só país.
Me lembro de um certo outubro
(da Aliança Liberal)
dos idos tristes de março
(que para alguns foi abril)
em que o povo - esse anfíbio
como sempre foi pescado
pelo discurso na praça:
— façamos a revolução
antes que a baleia a faça.
7
Esta baleia-mulher lancetada
nos fios do bastidor
é a mulher nordestina
entre-tecida na renda,
entristecida na sede
e possuída na rede
— do seu senhor.
Maria Bonita dos mares,
sinhá-moça de espartilho,
mulata seviciada,
freira limpa enclausurada,
mulher-dama desonrada,
doméstica empregada,
operária empobrecida,
virgem-máter dolorosa.
Esta é a baleia-mulher
despencando
dos motéis
aos disparos musculosos do pescador assassino
e seu sexo voraz.
Mais que a baleia-azul
é a baleia-menina, a mink
criança, baleia-em-flor
na grade colegial
adolescente e ansiada
desvirginada andorinha
no azul-e-branco da tarde
do colégio que há em nós.
Esta baleia-mulher
é a que retemos em casa
(dividimos com amantes)
sonhamos que é mãe perfeita
prepara jantar e cama
e nos serve o copo e o corpo
em postas de carne amorfa.
8
Elas se ajuntam em manadas no marajó das águas?
Elas rezam em grupo como crentes com sua fé disparada?
Sobem ladeiras de ondas com seus ex-votos nos ossos?
Baleias são como o povo.
Esperam o líder-messias
e o seguem proletárias
num aquoso comício
até se jogarem na areia
das prisões
e calabouços.
Baleias são como o povo.
Desprotegida alimária
sem saber qual o salário,
qual a força de trabalho,
desovando em praça alheia
como se o mar fosse seu.
E no Nordeste, as baleias
confundidas ignoram
se o sertão já virou mar,
se o mar virou sertão.
Antes lembram o Conselheiro
com seus homens de Canudos
caçados pelos obuses
de nossa fera república.
9
No Nordeste do país
assim como na favela ao lado
talvez haja "pureza e paz"
como há polícia e grito
se amanhece uma milícia
entre pássaros aos bandos
na "operação arco-íris"
contra o pivete-baleia
e o terrorista cardume
preso em bancos de areia.
Ainda ontem em Ipanema
uma garota-baleia
vinda do chopp das ondas
encalhou
à beira-mar.
Foi morta
pelos banhistas
e aquele que
salva-vidas
dela salvou-lhe o olho
num colar para Iemanjá.
Por isto
a morte marítima,
terrestre
ou marginal
dessa baleia
mais que metáfora
ou pintura,
mais que mostra multinacional de usura,
a qualquer hora que ocorra,
além de um crime a se ostentar,
é a nossa impotência na linha do horizonte,
um modo colorido de trucidar a aurora
— e ensangüentar o mar.