A LEMBRANÇA DO ALGOZ
O supliciado traz nos olhos
a imagem do algoz
como um retrato falado:
a cor dos olhos,
as sobrancelhas,
as pálpebras,
os dentes,
a boca,
a mão
que nunca mais apagará…
Uns não se esquecerão
dos nomes chamados,
AGUIAR,
MIRANDA,
TAVARES,
que ficarão nas retinas
por todos os anos passados
como um assombro do tempo
que deixa a imagem
da ignomínia
e do pavor…
O supliciado traz na memória
a silhueta do algoz
como uma fotografia na parede:
os ombros largos,
a camisa aberta,
o dente de ouro,
o sorriso de escárnio,
o tom de voz,
a arrogância conhecida,
o prazer do suplício,
o palito no canto da boca…
Uns não deixarão marcas
pelo corpo do vencido,
só palavras de injúria,
só gritos de pavor,
só ordens de excreção,
só ameaças de dor,
só escárnio sobre as faces,
só ira contra os entes,
só incitação ao suicídio,
só chantagens
e ameaças…
O supliciado traz nas noites
o sonho com o algoz
como um pesadelo infame,
o alicate sobre a mesa,
o fio elétrico ligado,
a palmatória na mão,
a barra do pau-de-arara,
o alfinete sob as unhas,
o coturno nos testículos,
o zumbido nos ouvidos…
Uns não se dão conta
de quantos açoites desferiram,
quantos dentes arrancaram,
quantos corpos estremeceram,
quantos sabugos esvaíram,
chutes,
socos,
cortes,
golpes,
telefones…
O supliciado traz nas entranhas
as dores diante do algoz
que ainda lhe traspassa
a carne indefesa,
trêmula,
tenra,
nova,
em baques surdos repetidos
até à exaustão
dos músculos impiedosos
sobre o corpo esvaído…
Uns não saberão ao certo
das vezes que se exauriram,
das vezes que esgotaram
as forças com as mãos
contra aqueles trapos,
aqueles miseráveis fétidos,
aqueles desgraçados trôpegos,
aqueles destroços humanos,
aqueles mortos-vivos no chão…
O supliciado traz na mente
o semblante do algoz
como uma oleogravura,
que não lhe sai do pensamento,
não lhe foge da retina,
não lhe escapa do sentido,
não se desgasta com o tempo,
não se perde com os anos,
não se dilui com as horas,
não se esquece com o passado…
O supliciado traz a imagem
da soberba
e da violência
do algoz em sua pele
como uma tatuagem eterna…
O supliciado traz a lembrança
do carrasco na retina,
e não haverá anistia,
não haverá amnésia,
não haverá pá de cal,
que o fará esquecer
as horas da ignomínia…
Rio de Janeiro, 18.10.71