A JUSTIÇA DA MORTE
A justiça julga os vencidos
com a lei dos vencedores.
O juiz com a toga,
o promotor com a arrogância,
o desembargador com a majestade,
o ministro como um deus,
todos colocam os pés
sobre o corpo algemado
dos que cometeram os crimes
da consciência despertada.
O tribunal com jurados
intimados sob vara,
para ouvir o blá-blá-blá
por horas de desperdício,
já que as provas são descartadas
e a verdade jogada ao lixo.
Nada mais libertará
aqueles corpos condenados
antes mesmo do julgamento,
feito Cristos de nossos dias…
Os advogados descabelam-se,
mostram as unhas arrancadas
daqueles corpos no banco
dos réus feito mortos-vivos.
Exibem as marcas do suplício,
os hematomas na pele,
os dentes partidos na raiz,
as tíbias tortas em fraturas,
as equimoses espalhadas,
os joelhos genuflexos,
os testículos em orquite,
os pés com açoites,
as mãos queimadas a ferro,
as narinas fumegantes,
os dedos amassados
como provas do único crime
cometido naquela sala
de austeridade
e falácia.
O juiz bate o martelo,
o promotor bate as patas,
o desembargador palita os dentes,
o ministro, por ser um deus,
diz que está muito atarefado,
cheio de processos em pilhas
sobre a mesa intangível…
— Condenados a mil anos
de horror e padecimento
e nada será lembrado
às gerações futuras.
Tudo ficará esquecido
sob a pedra do tribunal…
A justiça julga os torturados
com a lei dos torturadores.
Não haverá clemência
para quem aos vinte anos
louvar a Liberdade,
escrever versos proscritos,
despertar a consciência,
seguir o rumo desejado,
dizer não à tirania,
acalentar a esperança,
lutar com as próprias armas,
sonhar com o futuro
diante da Ordem do regime:
— Que todos aos vinte anos
farão continência nos quartéis,
jurarão amor à bandeira,
fidelidade ao hino,
obediência aos generais,
serão subservientes,
comportados
e omissos,
andarão no padrão da moda,
serão lacaios,
e covardes…
— Que todos aos vinte anos
procurarão nas livrarias
os livros permitidos
pela censura do regime,
elogiados pela crítica,
preferidos pelas misses,
aplaudidos pelo sistema…
Não haverá aos vinte anos
perdão aos venturosos,
os que saírem de casa
em busca do destino,
os que sonham acordados,
os que traçam seus rumos,
os que escrevem canções
em homenagem aos vencidos.
A justiça de hoje julga,
com uma lei corrompida,
todos os já condenados…
Rio de Janeiro, 19.3.72