A criação: contradições (I)
Se estou no mato sem cachorro
Isto é força de expressão
Ou fato consumado.
Se isto é força de expressão
Ei-la que enforma o impasse
Com um máximo expressivo
Em um mínimo de precisão.
Mas se estou no mato sem cachorro
mesmo
O fato se consuma
sem expressão alguma.
Apenas
a presença do mato
a minha
mais a ausência do cachorro.
Morro
perdido
ou comido pelas feras.
Sempre é um extravio.
Não achei o caminho
ou
sendo comido
o caminho me achou,
eu continuei perdido.
Se estou no mato sem cachorro
por força de expressão
A expressão forçada quebra
qualquer senso de equilíbrio
ruptura
da imagem clara
com o fato em bruto.
Nenhum elo
exceto
o da metáfora
de cuja eficácia
se
duvida
num mundo que se
objetiva.
Mas
se estou no mato sem cachorro
por força das circunstâncias
Que me adianta expressá-lo
não importa com que força?
Pois:
Se digo: o mato é escuro
Se digo: o mato é espesso
Se digo: eu estou nele
Se digo: não está o cachorro
Quem ouve?
O mato, que não tem orelhas?
Eu, que de mim não dou conta?
O cachorro, na sua ausência?
Mas se é
força de expressão
mesmo
Daí
quem:
transportará a mata,
eu,
o local em que o cão não aguarda,
para fora da expressão, para dentro
do fato por mim vivido?
Pois
um fato se consuma
escuro como um mato
espesso
O fato em bruto
Sem sentidos alertas: como o homem caído.
Sem refinamento como é o faro de um cachorro.
Sem a imaginosa vida da
imaginação vagabunda
que deambula sem peias pelo mato
em se sabendo sem saída.
Comentário do pesquisador
Em si mesmo, o poema não contém elementos que apontem expressis verbis para a ditadura. Mas a data de publicação – o livro é de 1974 – torna inevitável a articulação do(s) texto(s) com aquele contexto histórico. Palavras da autora na sua "Nota introdutória" ao volume: "A parte ficcional da obra [os contos e poemas do livro] foi escrita em diferentes espaços de tempo e organizada de uma perspectiva, por assim dizer, sobreficcional, que atuou no material existente, modificando-o. Tendo como referência um critério de valor anterior à organização do livro, a autora teria suprimido alguns trechos. Contudo, a "sobreficção" – assim lhe parece – tornou relevantes contos e poemas que não subsistiriam isolados" (p. 8).