Pedaços de minha vida (II)

José Emilson Ribeiro da Silva

    PEDAÇOS

DE MINHA VIDA

    (II)

 

25 de agosto,

5 horas da manhã...

Caminho, rua a fora

longamente atento

aos meus deveres cumprir,

não posso falhar, não posso

é o amor que impõe

é o amor que envia

e eu sigo esperançoso

de encontrar e cumprir

meus deveres com amor.

É o amor por ELA

que são todos,

que envia,

que guia,

Caminho longamente,

atento, olhando, e...

o indesejável vigiando,

e eis que

de longe vejo

a quem procuro

e sigo

e confio

e me aproximo

de lábios abertos e na face o riso

como sempre ao seu encontro ia.

Mas...

Não é alegria que me chega,

não é amor que recebo,

não é amor que sinto,

não é felicidade que me sobeja,

não é o prazer que me invade,

são seus opostos que me esperam.

 

E o vigiado indesejável aparece,

são cinco e trinta da manhã!

Gritos, correria,

armas em profusão,

cena de horror...

e eis que tombo, e

sobre mim caem

brutamontes às dezenas,

numa pancadaria infernal

e eu,

que da arma sacara,

nada, nada pude fazer.

Mudo, paralisado, entorpecido

pelos choques dos fatos

mais pareço um grão de arroz

por formigas carregado.

 

Da face me escorre

abundante líquido,

as narinas invadidas

do insosso fedor,

as roupas embebidas

da pegajosa substância, e

de vermelho, tintas...

ESTOU PRESO.

Sou um fardo vivo

no lastro

de um carro jogado.

Sou carne em receptáculo

sob punhos cerrados, e

por coronhas d’armas

massacrado

qual bife em preparo.

Caras medonhas me fitam,

e gritam:

“Aparelhos, pontos, pontos, aparelho...”

Pancadas, contorções, desmaios,

giros no próprio corpo, e

nos fios enrolando-se

fios trazendo

formidolosos choques

paralisando corpo e mente.

 

De repente...

Tudo escurece à minha vista...

É um saco negro

em minha cabeça envolvido.

E continuo, nestes estertores

até que,

do veículo arrancam

este fantasma mascarado,

rasgado,

de sangue tingido,

e sigo

numa caminhada difícil

nas paredes, aos encontrões,

choques violentos,

contorções, pancadas, quedas...

Numa cena que,

aos sádicos hilariantes

causa prazeres e gozos

numa realização interior

de animais doentios.

Sigo,

contra paredes,

aos encontrões chocantes,

de ressonância abafada,

e perguntam gritando

se seco estou?

Mas, como ver?

Se tudo é negro

à minha volta...

Ah! Aquele capuz preto!

 

De repente, de repente,

numa minúscula sala estou,

toda branca, forrada, abafada

para os gritos lancinantes

das dores não trespassar.

No chão...

água, sangue, vômitos, fezes

doutros que me antecederam.

É A CÂMARA DE TORTURAS.

Agora,

nu, pendurado

com a bunda pro mundo

a fotografar

caras nojentas, imundas,

mais imundas

que minha própria bunda

que sangra e derrama

sob pressão

da haste da vassoura

fazendo as vezes

de falo devastador.

É A TORTURA,

é o café em fogo

na cara jogado

que aos olhos me queima.

É o rosto que arde

sob fios surrantes,

é água derramada

narinas a dentro

quase afogado...

São choques convulsivos

terrificantes

fechando olhos e boca

impedindo de gritar

as dores sentidas.

Só as aurículas transmitiam

o mundo exterior

ao meu eu, e

ouço

entre choques e dores

gritos que perguntam,

na pausa da agressão,

mostrando retratos:

“Conhece esta?

É a mulher dele?

Aparelho, pontos, aparelho”.

Não sei!

Nunca vi!

Não tenho!

Choques, convulsões,

sede terrível,

sangue gotejando,

baba escorrendo,

água jorrando,

sobre narinas, e

sobre o pênis

que vibra envolto

nos fios que

choques transmitem.

Agora,

não só o pênis,

também a orelha

ganha seu quinhão

que recebe e transmite

ao cérebro os choques

numa violência sem par,

que afeta, fere e deforma

a percepção.

 

Tiram-me do “pau-de-arara”

desatam-me as mãos

roxas, insensíveis

pelo torpor do sangue

nas veias paralisado.

Puxam-me, arrastam-me

pelos cabelos,

rodopiando sobre vômitos,

fezes, baba, sangue, urina...

É A TORTURA

no sapato “Luiz XV”,

sobre latas

massacrando os pés

acompanhados de choques

que me põem ao chão, e,

entre choques e convulsões,

reerguer e montar

sobre latas

para novamente cair, e

novamente

entre convulsões seguir

numa agonia sem fim.

 

Depois...

Depois a cela sem pão

que falta não fazia.

Só um desejo louco

de não viver...

Um desejo ardente, de morrer.

Morte rápida

sem agonias.

Só tu, oh Morte,

falta fazias.

Dops, Recife, 19/11/73.

 

Esta poesia, PEDAÇOS DE MINHA VIDA,

relata o comportamento mantido durante longas

seções de tortura, comportamento

que infelizmente não... não foi man-

tido até o fim. E em seu hiato, de e-

xistência, consequências de dores ma-

iores porquanto marcam não só o cor-

po, mas, muito mais o espírito em

suas auto-decepções, seus medos de

si próprio, suas renúncias e auto-pu-

nições baixando sobre seu corpo mar-

cado e sua alma dilacerada, o látego

acusador de sua consciência, deixan-

do indeléveis cicatrizes para todo o

sempre restos de vida. Emil

 

 

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