PEDAÇOS
DE MINHA VIDA
(II)
25 de agosto,
5 horas da manhã...
Caminho, rua a fora
longamente atento
aos meus deveres cumprir,
não posso falhar, não posso
é o amor que impõe
é o amor que envia
e eu sigo esperançoso
de encontrar e cumprir
meus deveres com amor.
É o amor por ELA
que são todos,
que envia,
que guia,
Caminho longamente,
atento, olhando, e...
o indesejável vigiando,
e eis que
de longe vejo
a quem procuro
e sigo
e confio
e me aproximo
de lábios abertos e na face o riso
como sempre ao seu encontro ia.
Mas...
Não é alegria que me chega,
não é amor que recebo,
não é amor que sinto,
não é felicidade que me sobeja,
não é o prazer que me invade,
são seus opostos que me esperam.
E o vigiado indesejável aparece,
são cinco e trinta da manhã!
Gritos, correria,
armas em profusão,
cena de horror...
e eis que tombo, e
sobre mim caem
brutamontes às dezenas,
numa pancadaria infernal
e eu,
que da arma sacara,
nada, nada pude fazer.
Mudo, paralisado, entorpecido
pelos choques dos fatos
mais pareço um grão de arroz
por formigas carregado.
Da face me escorre
abundante líquido,
as narinas invadidas
do insosso fedor,
as roupas embebidas
da pegajosa substância, e
de vermelho, tintas...
ESTOU PRESO.
Sou um fardo vivo
no lastro
de um carro jogado.
Sou carne em receptáculo
sob punhos cerrados, e
por coronhas d’armas
massacrado
qual bife em preparo.
Caras medonhas me fitam,
e gritam:
“Aparelhos, pontos, pontos, aparelho...”
Pancadas, contorções, desmaios,
giros no próprio corpo, e
nos fios enrolando-se
fios trazendo
formidolosos choques
paralisando corpo e mente.
De repente...
Tudo escurece à minha vista...
É um saco negro
em minha cabeça envolvido.
E continuo, nestes estertores
até que,
do veículo arrancam
este fantasma mascarado,
rasgado,
de sangue tingido,
e sigo
numa caminhada difícil
nas paredes, aos encontrões,
choques violentos,
contorções, pancadas, quedas...
Numa cena que,
aos sádicos hilariantes
causa prazeres e gozos
numa realização interior
de animais doentios.
Sigo,
contra paredes,
aos encontrões chocantes,
de ressonância abafada,
e perguntam gritando
se seco estou?
Mas, como ver?
Se tudo é negro
à minha volta...
Ah! Aquele capuz preto!
De repente, de repente,
numa minúscula sala estou,
toda branca, forrada, abafada
para os gritos lancinantes
das dores não trespassar.
No chão...
água, sangue, vômitos, fezes
doutros que me antecederam.
É A CÂMARA DE TORTURAS.
Agora,
nu, pendurado
com a bunda pro mundo
a fotografar
caras nojentas, imundas,
mais imundas
que minha própria bunda
que sangra e derrama
sob pressão
da haste da vassoura
fazendo as vezes
de falo devastador.
É A TORTURA,
é o café em fogo
na cara jogado
que aos olhos me queima.
É o rosto que arde
sob fios surrantes,
é água derramada
narinas a dentro
quase afogado...
São choques convulsivos
terrificantes
fechando olhos e boca
impedindo de gritar
as dores sentidas.
Só as aurículas transmitiam
o mundo exterior
ao meu eu, e
ouço
entre choques e dores
gritos que perguntam,
na pausa da agressão,
mostrando retratos:
“Conhece esta?
É a mulher dele?
Aparelho, pontos, aparelho”.
Não sei!
Nunca vi!
Não tenho!
Choques, convulsões,
sede terrível,
sangue gotejando,
baba escorrendo,
água jorrando,
sobre narinas, e
sobre o pênis
que vibra envolto
nos fios que
choques transmitem.
Agora,
não só o pênis,
também a orelha
ganha seu quinhão
que recebe e transmite
ao cérebro os choques
numa violência sem par,
que afeta, fere e deforma
a percepção.
Tiram-me do “pau-de-arara”
desatam-me as mãos
roxas, insensíveis
pelo torpor do sangue
nas veias paralisado.
Puxam-me, arrastam-me
pelos cabelos,
rodopiando sobre vômitos,
fezes, baba, sangue, urina...
É A TORTURA
no sapato “Luiz XV”,
sobre latas
massacrando os pés
acompanhados de choques
que me põem ao chão, e,
entre choques e convulsões,
reerguer e montar
sobre latas
para novamente cair, e
novamente
entre convulsões seguir
numa agonia sem fim.
Depois...
Depois a cela sem pão
que falta não fazia.
Só um desejo louco
de não viver...
Um desejo ardente, de morrer.
Morte rápida
sem agonias.
Só tu, oh Morte,
falta fazias.
Dops, Recife, 19/11/73.
Esta poesia, PEDAÇOS DE MINHA VIDA,
relata o comportamento mantido durante longas
seções de tortura, comportamento
que infelizmente não... não foi man-
tido até o fim. E em seu hiato, de e-
xistência, consequências de dores ma-
iores porquanto marcam não só o cor-
po, mas, muito mais o espírito em
suas auto-decepções, seus medos de
si próprio, suas renúncias e auto-pu-
nições baixando sobre seu corpo mar-
cado e sua alma dilacerada, o látego
acusador de sua consciência, deixan-
do indeléveis cicatrizes para todo o
sempre restos de vida. Emil