Monólogo, quase diálogo com uma menina possível

Renato Soares

MONÓLOGO, QUASE DIÁLOGO
COM UMA MENINA POSSIVEL

 

Sim,

buscarei o dia do homem-homem,

do diálogo possível,

correspondência plena,

intercâmbio de endereços revelados.

 

(Mas hoje...

também hoje

misturar meus cabelos

aos carinhos dos seus dedos,

mergulhar minha mão na confiança

da sua mão.

Ter o grande amor, necessário na briga.)

 

Sim, construiremos o dia:

os gestos, os atos,

as manifestações todas

me confirmaram os bons

e o futuro realizando homens!

 

(Mas hoje, prisão!

Menina, na prisão

o portão é uma ânsia de entrar

amigos: pedaços de liberdade para a fome do preso.

Na prisão, faca de dois gumes,

se ama os passos na escada...

triiiimmm... é o telefone!

— Por mais que as botas policiais esmaguem

passos

ou o telefone e voz censurados transmitam ordens,

dúvidas

restrições

e humilhações,

podem trazer notícias (!): você ou os amigos,

a desconhecida que envia bilhetes

pelo soldado que ainda é povo e vem buscar o favor,

como vai a família, o Vietnam livre,

a ditadura derrubada

o time vencendo

a criança que me chama

e é filha do tenente,

o ovo que está chocando!)

 

Sim,

virá o dia:

também entre a polícia

me confirmaram

que as rosas necessárias são plantadas

e as podas multiplicam até os jardineiros...

desconjuntam as automáticas tesouras dos tesouros!

 

Sim, menina,

virá o dia dos jardins

porque ainda existem flores,

porque o esterco alimenta flores,

e terras férteis clamam flores

e jardineiros

e sementes — como você, menina —,

para o chão caluniado,

massacrado.

 

(Bem sei necessário

que as mãos carreguem flores

para enfeitar a liberdade exigida pelo rosto suado,

mas antes

as flores podem ser metralhas,

balas, as sementes...

E o sangue (porque assim?)

aduba o jardim humano.

E novas flores

das flores e dos espinhos mortos.

E a corrente quebrada sustentará

o alvorecer da madrugada metralhada.)

 

Sim,

esperarei o dia:

ah, quando pudermos

o corpo vestir de pele,

nós vestirmos nós

e o amor engravidar encontros!

 

(Mas, menina possível,

quase-rainha-de-um-súdito-só,

porque assim deseja,

olhamos televisão!

Sentadinhos no chão

crescem os cabelos

com a música do violão.

Crescem neuróticas ações,

tóxicas saudades

 e vontades,

revolucionárias fomes

rondam filhos dos pais

rondam filhos do país.

Crescem saudades-desejos,

os retratos dos presidentes,

    assustados

nas paredes do CÉU... (*)

Saudades,

o radinho embrulhado,

o dia partido, realidade e conjetura incertas,

o nosso canto-sonho tão longo

e apenas um colchão,

um quadrado, fuga.

À vista, prisão!

 

Menina,

é absurdo enfurnar

para poder amar!

 

Mas é o que permitem.

   Aceitamos somente um volks?)

 

Sim,

virá o dia

do arrebenta-pedra que cresce sob outra cor,

do hoje-subterrâneo-conspirando-amor.

 

(Ou serão suficientes as grades

e os limites

e o medo

e o esmagar de corpos

    e sonhos

para impedir a carne-flor?

 

Sim,

contra monstruosas miragens

espalharam guardas...

 

Ah, se soubessem os soldados:

atiram no próprio peito,

maioria cúmplices inocentes do saque ao suor.

 

Objetivos também

hastearam medo no horizonte humano,

derramaram injustiças

sobre os campos semeados

sobre o fruto não-colhido plenamente,

mas certo a todas as fomes!

 

Sim,
são fortes as amarras

que prendem os homens às grandes comidas,

mas

não são fortes as amarras

que prendem os homens a minguadas comidas.

 

E é preciso

mais que um recanto

um susto

um colchão e a amada

para o amor!)

 

... Menina,

os gestos, os atos,

as manifestações todas

me confirmaram os bons

e o futuro realizando homens.

 

Mesmo que hoje as perspectivas

concentrem esperanças nos subterrâneos,

é preciso sair

e abraçar coragem,

que já é hora!

 

(prisão, 1966)

 

(*) Clube dos Estudantes Universitários — Vitória - ES

 

 

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