POEMA–PRÓLOGO
Fui assassinado.
Morri cem vezes
e cem vezes renasci
sob os golpes do açoite.
Meus olhos em sangue
testemunharam
a dança dos algozes
em torno do meu cadáver.
Tornei-me a mineral
memória da dor.
Para sobreviver,
recolhi das chagas do corpo
a lua vermelha de minha crença,
no meu sangue amanhecendo.
Em cinco séculos
reconstruí minha esperança.
A faca do verso feriu-me a boca
e com ela entreguei-me à tarefa de renascer.
Fui poeta
do povo da noite
como um grito de metal fundido.
Fui poeta
como uma arma
para sobreviver
e sobrevivi.
Companheira,
se alguém perguntar por mim:
sou o poeta que busca
converter a noite em semente,
o poeta que se alimenta
do teu amor de vigília
e silêncio
e bebeu no próprio sangue
o ódio aos opressores.
Porque sou o poeta
dos mortos assassinados,
dos eletrocutados, dos "suicidas",
dos "enforcados" e "atropelados",
dos que "tentaram fugir",
dos enlouquecidos.
Sou o poeta
dos torturados,
dos "desaparecidos",
dos atirados ao mar,
sou os olhos atentos
sobre o crime.
Companheira,
virão perguntar por mim.
Recorda o primeiro poema
que lhe deixei entre os dedos
e dize a eles
como quem acende fogueiras
num país ainda em sombras:
meu ofício sobre a terra
é ressuscitar os mortos
e apontar a cara dos assassinos.
Porque a noite não anoitece sozinha.
Há mãos armadas de açoite
retalhando em pedaços
o fogo do sol
e o corpo dos lutadores.
Venho falar
pela boca de meus mortos.
Sou poeta-testemunha,
poeta da geração de sonho
e sangue
sobre as ruas de meu país.
Comentário do pesquisador
Pedro Tierra é pseudônimo de Hamilton Pereira da Silva. A segunda edição de "Poemas do povo da noite" (coeditada pela Fundação Perseu Abramo e pela Publisher Brasil, em 2009) apresenta um texto introdutório intitulado “Explicação necessária”. Nessa introdução, Pedro Tierra (Hamilton Pereira da Silva) informa: “Os poemas aqui reunidos foram escritos durante os cinco anos de prisão – de 1972 a 1977 – e publicados em volumes separados: Poemas do povo da noite (Ed. Livramento, S. Paulo, 1979), Água de Rebelião (Ed. Vozes, Petrópolis, 1983)” (2009, p. 19). Na edição de 2009, o "Poema-Prólogo” consta nas páginas 29-30. A última estrofe foi omitida nessa segunda edição.